quinta-feira, 8 de outubro de 2009

Texto bem humorado de Veríssimo



TEXTO BEM-HUMORADO DE VERÍSSIMO ACERCA DO ACORDO ORTOGRÁFICO.

                Os amigos reuniram-se à mesa do bar. Chegaram todos com um ar de preocupação. Sabiam que, desta vez, havia algum assunto sério a ser tratado entre as rodadas de cerveja geladíssima. Havia algo de grave na voz do Trema quando receberam a convocação por telefone.
               Chegaram quase todos ao mesmo tempo. O Ponto, a Vírgula, a Crase, o Ditongo, os gêmeos Acento Agudo e Acento Circunflexo, o Til – que levou o sobrinho porque não tinha com quem deixá-lo –, o Travessão e a Cedilha. O Sufixo, como sempre, chegou depois de todo mundo.
                Antes de pedir a primeira cerveja, o Trema foi logo falando, a voz meio embargada.
               – Meus amigos, chamei todos vocês aqui porque o assunto é grave. Não vou enrolar porque considero vocês são como de minha família. Eu estou no fim. Meus dias estão contados.
              O Travessão interveio, rápido.
              – Peraí. Não dá para engolir a seco uma notícia dessas. Ô, Cafu, desce umas cervas aí, urgente, por favor!
             Alguns fizeram cara de espanto. Pura encenação. Lêem jornais, portanto, já sabiam. Outros, como o Ditongo e a Crase, realmente se assustaram.
            – Como assim? Você tá brincando, Tre! – disse a Crase, já com os olhos marejados.
            – É a pura verdade. Pura e triste verdade.
            Tomou um longo gole de cerveja e explicou.
           – É a reforma ortográfica. Será implantada em 2008. Portanto, no ano que vem eu não estarei mais aqui.
           – Não é possível! – reagiu o Ditongo, como sempre desavisado.
          – É sim. Eu mesmo li meu anúncio fúnebre na Folha de São Paulo.
          Tira um recorte amassado do bolso da calça. Quase chorando, lê para os amigos:
          – Abre aspas: O fim do trema está decretado desde dezembro do ano >passado. Os dois pontos que ficam em cima da letra u sobrevivem no corredor da morte à espera de seus algozes. Fecha aspas.
          Silêncio na mesa.
         – Como vêem, são meus últimos dias. Tantos anos de serviços prestados à língua portuguesa não valeram nada. Simplesmente decretaram dia e hora para minha morte.
        – Meu Deus. Que absurdo! – reage a Cedilha, lutando para segurar as lágrimas.
        – Pois é. Inventaram que é preciso unificar a ortografia entre os oito países que usam a língua portuguesa. Argumentam que isso vai aproximar as culturas. E eu, amigos, serei oferecido em sacrifício.
        - Há um misto de perplexidade, revolta e pena em volta da mesa.
        – Algum burocrata da ortografia decidiu que eu sou inútil. Acham que eu ungüento aguado.
        – Aguado pode ser. Ungüento, não. Unguento – protesta o Travessão, sob o olhar de reprovação geral.
        – Desculpe, mas vocês sabem: eu perco o amigo, mas não perco a piada.
        O Trema procura ignorar. Conhece o amigo há décadas. Sabe que ele não perde a velha mania. Continua a conversa lamuriante.
       – Ainda quiseram me consolar, dizendo que eu, companheiro de vocês em tantas jornadas, sobreviverei em nomes próprios. Balela. Eu sobreviveria na Alemanha, com seus Günter e Müller da vida, mas aqui, no Brasil, meu destino está selado.
         Pedem mais cerveja.
       – Por isso eu chamei vocês. Fiz questão que fosse aqui no Bar Azul, que a gente freqüenta desde o tempo da faculdade. Aqui comemoramos momentos felizes e choramos momentos tristes. Logo, só vocês poderão freqüentar aqui. Eu serei apenas lembrança. Aliás, nem vocês poderão freqüentar. Terão de frequentar.
        Todos se abraçam. Alguém propõe um brinde, dizendo que a amizade entre o grupo permanecerá para sempre, mesmo que um dia reste apenas um para beber no bar. É nesse momento que notam a ausência do Hífen.
        – Alguém sabe dele? – pergunta o Trema.
         O Acento Agudo sabe.
        – Não vem. Está deprimido. A reforma ortográfica também mexeu com ele.
        O Hífen não será mais usado quando o segundo elemento começa com s ou r. Ele já sabe que nesse caso será substituído pela duplicação das consoantes. Sacaram? No futuro só haverá antirreligioso, contrarregra, antissemita. Ele também deixará de ser usado quando o prefixo termina em vogal e o segundo elemento começa com uma vogal diferente, como extraescolar, aeroespacial e autoestrada.
         – O Hífen nunca lidou muito bem com as perdas da vida – lembra o Trema. Mas pelo menos ele vai continuar existindo.
         – Todos nós saímos perdendo com essa reforma – pondera um dos gêmeos.
         – Eu, Acento Circunflexo, por exemplo, vou ser defenestrado das >terceiras pessoas do plural do presente do indicativo ou do subjuntivo dos verbos 'crer', 'dar', 'ler', 'ver' e seus derivados. Quando vocês lerem 'crêem', 'vêem' 'lêem' e 'dêem' sentirão minha ausência. Também vão me tirar das palavras terminadas em hiato 'oo'. Quem tiver enjôo no voo não terá minha companhia.
           Seu irmão gêmeo também choraminga.
          - Vocês sabem que tudo que afeta meu irmão afeta a mim também – intervém o Acento Agudo. Eu perderei minha função nos ditongos abertos 'ei' e 'oi' de palavras paroxítonas. Não me querem mais em 'idéia', 'assembléia', 'jibóia' e 'assembléia', por exemplo. Também ficarei de >fora nas palavras paroxítonas, com 'i' e 'u' tônicos, quando precedidos de ditongo. 'Feiúra' e 'baiúca' passarão a ser 'feiura' e 'baiuca'. Mas nesses casos tudo bem. Eu nunca gostei de 'feiúra' e 'baiúca'.
             Duro mesmo é saber que serei extirpado sem dó nas formas verbais que têm o acento tônico na raiz, com 'u' tônico precedido de 'g' ou 'q' e seguido de 'e' ou 'i'. Modéstia à parte, sempre me orgulhei de dar um ar aristocrático a algumas formas de verbo. Ouçam bem: 'averigúe', 'apazigúe', argúem'. Sem mim, isso não terá a menor graça.
           – Só sobreviveremos em nossa integralidade nos livros da Antigüidade e, observa o Trema, melancólico. E pensar que até Antigüidade vai virar antiguidade. Imagine as conseqüências dessa mudança. Quer dizer, as consequências. A esta altura, já estão todos meio embriagados. O Ponto, sempre otimista, lembra que pelo menos um membro da turma sairá ganhando com a reforma.
           - O Alfabeto, gente. Vão incorporar ao Alfabeto as letras k, w e y.
           - É por isso que ele não veio – explica a Vírgula. Disse que ia na Leroy Merlin porque agora vai ter de aumentar a casa.
             Alguém chama o garçom.
           - Cafu, mais cerveja. Nós vamos agüentar firme, aqui com o Trema.
            - Vamos abrir uma trincheira etílica em defesa do nosso velho e bom amigo.
            -Propõem outro brinde. E voltam a chamar o garçom, que já se distanciava.
            - Traz também uma porção de lingüiça calabresa. Sem cebola. Mas não esquece do trema, por favor!

4 comentários:

  1. este texto facilita muito para entender as novas regras ortograficas,embora eu acha que nao era preciso fazer esta nova reforma!

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  2. Naum tenho nada contra o trema mais adorei ele ter saido da lingua portuguesa pois nunca vi sentido algum nele o trema...

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  3. Para quem já terminou os estudos, as regras farão grande diferença.

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  4. Amei esse texto! É muito interessante, pois através dele podemos aprender o básico da reforma ortográfica, isso ajuda bastante!
    Marcelle Fernanda
    C.E.Pres.Castelo Branco- Mara Rosa - GO

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